um blogue à deriva

26/09/11



dersteppenwolff

(grande fotografia e grande blog do Carlos Coelho)

3 comentários:

  1. :)

    Poema Temperamental, Joaquim Pessoa

    Ó caralho! Ó caralho!
    Quem abateu estas aves?
    Quem é que sabe? quem é
    que inventou a pasmaceira?
    Que puta de bebedeira
    é esta que em nós se vem
    já desde o ventre da mãe
    e que tem a nossa idade?
    Ó caralho! Ó caralho!
    Isto de a gente sorrir
    com os dentes cariados
    esta coisa de gritar
    sem ter nada na goela
    faz-nos abrir a janela.
    Faz doer a solidão.
    Faz das tripas coração.
    Ó caralho! Ó caralho!
    Porque não vem o diabo
    dizer que somos um povo
    de heróicos analfabetos?
    Na cama fazemos netos
    porque os filhos não são nossos
    são produtos do acaso
    desde o sangue até aos ossos.
    Ó caralho! Ó caralho!
    Um homem mede-se aos palmos
    se não há outra medida
    e põe-se o dedo na ferida
    se o dedo lá for preciso.
    Não temos que ter juízo
    o que é urgente é ser louco
    quer se seja muito ou pouco.
    Ó caralho! Ó caralho!
    Porque é que os poemas dizem
    o que os poetas não querem?
    Porque é que as palavras ferem
    como facas aguçadas
    cravadas por toda a parte?
    Porque é que se diz que a arte
    é para certas camadas?
    Ó caralho! Ó caralho!
    Estes fatos por medida
    que vestimos ao domingo
    tiram-nos dias de vida
    fazem guardar-nos segredos
    e tornam-nos tão cruéis
    que para comprar anéis
    vendemos os próprios dedos.
    Ó caralho! Ó caralho!
    Falta mudar tanta coisa.
    Falta mudar isto tudo!
    Ser-se cego surdo e mudo
    entre gente sem cabeça
    não é desgraça completa.
    É como ser-se poeta
    sem que a poesia aconteça.
    Ó caralho! Ó caralho!
    Nunca ninguém diz o nome
    do silêncio que nos mata
    e andamos mortos de fome
    (mesmo os que trazem gravata)
    com um nó junto à garganta.
    O mal é que a gente canta
    quando nos põem a pata.
    Ó caralho! Ó caralho!
    O melhor era fingir
    que não é nada connosco.
    O melhor era dizer
    que nunca mais há remédio
    para a sífilis. Para o tédio.
    Para o ócio e a pobreza.
    Era melhor. Com certeza.
    Ó caralho! Ó caralho!
    Tudo são contas antigas.
    Tudo são palavras velhas.
    Faz-se um telhado sem telhas
    para que chova lá dentro
    e afogam-se os moribundos
    dentro do guarda-vestidos
    entre vaias e gemidos.
    Ó caralho! Ó caralho!
    Há gente que não faz nada
    nem sequer coçar as pernas.
    Há gente que não se importa
    de viver feita aos bocados
    com uma alma tão morta
    que os mortos berram à porta
    dos vivos que estão calados.
    Ó caralho! Ó caralho!
    Já é tempo de aprender
    quanto custa a vida inteira
    a comer e a beber
    e a viver dessa maneira.
    Já é tempo de dizer
    que a fome tem outro nome.
    Que viver já é ter fome.
    Ó caralho! Ó caralho!
    Ó caralho!

    ___

    alexandra g.

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